A inclusão de profissionais neurodivergentes contribui significativamente para o fortalecimento da saúde mental dos colaboradores e de uma cultura de alto desempenho nas empresas. Para explicar como isso acontece, precisamos nos lembrar dos canários…
Por boa parte do século 20, cada mina de carvão da Inglaterra “empregava” dois canários. A intensa respiração das aves as tornava particularmente sensíveis ao monóxido de carbono: um gás tóxico, inodoro e incolor que se acumula com frequência após explosões subterrâneas.
Os animais eram carregados às profundezas em pequenas gaiolas pelos mineiros. Qualquer sinal de agitação dos canários indicava que o ambiente era inseguro e que uma evacuação imediata de todo o pessoal precisava acontecer.
Foi somente em 1986 que os canários foram substituídos por detectores eletrônicos. No entanto, a metáfora do “canário na mina de carvão” permanece até hoje representativa da experiência da maioria dos profissionais neurodivergentes trabalhando em empresas e instituições de todos os tipos. A metáfora é tão potente que o animal foi adotado como símbolo do grupo de pesquisa e suporte internacional de médicos autistas e incorporado no título do livro sobre neuroinclusão da pesquisadora Ludmila Praslova.
Uma “nova” dimensão da diversidade
Não existem duas pessoas iguais. Avanços recentes nas neurociências comprovaram também que não existem duas pessoas com funcionamentos cerebrais idênticos. Essas variações naturais levam a diferenças em como apreendemos o mundo a partir dos nossos sentidos, em como pensamos, sentimos e nos comportamos. Em consequência disso, cada indivíduo terá uma combinação única de desafios e talentos neurocognitivos.
Algumas pessoas, chamadas de neurodivergentes ou neuroatípicas, têm funções cerebrais que divergem da média populacional de maneira mais pronunciada. Isso faz com que tenham mais dificuldade na realização de tarefas que envolvam a ativação de zonas cerebrais específicas, ao mesmo tempo que experimentem grande facilidade com atividades envolvendo outras zonas cerebrais.
Antes de iniciarmos qualquer reflexão sobre inclusão de neurodivergentes, é importante alinharmos três informações cruciais:
Primeiramente, pessoas neurodivergente possuem uma ou mais condições de origem genética (ou seja, codificadas no DNA desde o nascimento) relacionadas à estrutura e ao funcionamento de seus cérebros. Dentre as condições neurodivergentes incluímos o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Dislexia, Discalculia, Dispraxia, Síndrome de Tourette, Altas Habilidades/Superdotação, entre outras. Todas as condições somadas, estima-se que pessoas neurodivergentes representem de 20 a 30% da população mundial.
Em segundo lugar, uma vez que a variação neurológica é natural e positiva para a continuidade da espécie humana neste planeta, não faz sentido pensar nesta diversidade como uma doença para a qual devemos nos empenhar a encontrar uma cura. Da mesma forma que não faz sentido considerar pessoas canhotas como doentes simplesmente porque a maioria da população é destra, também é insensato tratar indivíduos neurodivergentes como adoecidos.
Por fim, a despeito do que se dissemina ultimamente, condições neurodivergentes não são uma nova moda nem invenção da indústria farmacêutica. O autismo, por exemplo, foi descrito na medicina pela primeira vez em 1925 e o TDAH, em 1798, muito antes da indústria farmacêutica consolidar-se no pós-guerra.
O estigma da doença mental
Em maio de 2024, o Instituto Diversidade conduziu uma pesquisa nacional inédita, com mais de 250 profissionais em 53 empresas de variados setores da economia. A pesquisa tinha por objetivo identificar como profissionais neurodivergentes (autistas, com TDAH ou disléxicos) são percebidos no ambiente de trabalho brasileiro.
Para nossa surpresa, 23% dos respondentes tinha alguma convicção sobre a possibilidade de cura para essas condições, mais da metade mantinha alguma crença equivocada sobre suas causas e 36% concordava com afirmativas que estigmatizam profissionais neurodivergentes no ambiente de trabalho. Ocupando o topo da lista de crenças equivocadas, um a cada quatro respondentes confundia autismo e TDAH com uma doença mental, tal qual a depressão, ansiedade ou transtorno psicótico.
Combinadas, essas percepções contribuem para as gigantescas barreiras de acesso, permanência e encarreiramento de neurodivergentes no mercado de trabalho formal. Segundo a ONU, mais de 80% dos profissionais neurodivergentes no mundo estão desempregados. Aqui no Brasil, o relatório “Perfil das 1.100 maiores empresas brasileiras” do Instituto Ethos, de 2024, identificou que autistas compõem menos de 0,1% dos quadros funcionais.
Não é preciso buscar longe na História as consequências da associação de um grupo social com doença mental. Há poucas décadas (e em muitos lugares, até os dias atuais), a percepção que a orientação sexual divergente da norma heterossexual era uma doença psiquiátrica contribuiu para manter uma proporção significativa de pessoas LGBTQIA+ fora do mercado de trabalho.
Canários em ambientes tóxicos
Diariamente, milhões de pessoas acordam, tomam café e trabalham em nossas empresas por pelo menos 8 horas. É estranho pensar que esses belos escritórios, com paredes brancas, selos de qualidade e computadores de última geração possam, de alguma forma, assemelhar-se com as sujas e insalubres minas de carvão inglesas… Mesmo assim, é precisamente em nossas empresas onde trabalha a população mais ansiosa do mundo. E elas empregam também a população com a segunda maior taxa de burnout do planeta.
Esse contexto não é exclusividade nacional. O relatório “State of the Global Workplace” da Gallup apontou que apenas 9% dos colaboradores no mundo relatam estar simultaneamente engajados no trabalho e prosperando em suas vidas. A maioria (57%) não está engajada nem prosperando.
Isso ocorre porque difundiu-se a crença que pessoas devem ter o desempenho regular de máquinas: qualquer flutuação é tratada como falha de caráter. Além disso, a própria estrutura que alicerça como o trabalho é realizado provoca conflitos irreconciliáveis: vivemos um contexto de muita insegurança no emprego e pouca segurança para abordá-la na empresa; de acúmulo de funções e carência de civilidade e ética nos relacionamentos profissionais; de mais apelos ao “espírito de dono” e menos autonomia; de mais exigências por trabalho intelectual focado e menos liberdade para gerenciar interrupções.
Onde estão nossos canários?
Práticas ultrapassadas de gestão e cuidado
As respostas organizacionais à ameaça à saúde nos times tem sido, no mínimo, ineficaz. A maioria dos programas empresariais de saúde mental responsabiliza e redobra as demandas sobre os indivíduos, que já se encontram sobrecarregados, sem alterar dinâmicas e processos organizacionais disfuncionais.
Beber água, praticar exercício físico regularmente, tirar pausas curtas ao longo do dia ou ter um número de telefone para o qual ligar em momentos de angústia são dicas úteis para o bem-viver. Porém, para o profissional flertando com o burnout ou sofrendo de ansiedade generalizada, essas recomendações são o equivalente de tratar a doença pulmonar provocada pelos gases tóxicos das minas com recomendação de praticar respiração na natureza semanalmente. Não é suficiente. Nem de longe!
Ademais, quando voltamos a atenção para grupos minorizados, encontramos proporções ainda mais alarmantes de adoecimento psicoemocional no trabalho: não em decorrência de uma predisposição inata, mas do acúmulo de violências, microagressões e estresses adicionais a que estão sujeitos ao carregarem o fardo de ser minoria nesses espaços. Por exemplo, o Censo IBGE 2022 apontou que a população negra no Brasil possui uma idade média 4 anos menor que a população branca. Isso ocorre porque os estresses psíquicos e emocionais do racismo diário, somados às suas consequências materiais, influenciam diretamente a qualidade de vida e longevidade desse grupo.
Apesar de persistirem no modelo mental coletivo sobre quando, como e onde nosso melhor trabalho é realizado, muitas práticas organizacionais já tiveram sua eficácia refutada. Ao contrário do que se acredita, os barulhentos escritórios em planos abertos (open space) reduzem a comunicação presencial, aumentam as distrações e sensação de hipervigilância, enquanto as tradicionais sessões de brainstorming reforçam vieses de grupo (groupthink), amplificam a ansiedade social de introvertidos e produzem ideias menos criativas que métodos assíncronos.
Como empresas inclusivas promovem bem-estar e produtividade para todo mundo?
Em função de seus cérebros atípicos, profissionais neurodivergentes sofrem mais com práticas de gestão ineficazes que pares neurotípicos.
Nos escritórios em plano aberto (open space), autistas percebem com mais intensidade os incômodos sensoriais enquanto pessoas com TDAH sentem mais o impacto das interrupções e distrações que seus pares. Ambas se veem obrigadas a implementar estratégias individuais desgastantes para camuflar sua condição e contornar a dificuldade gerada pelo ambiente.
Similarmente, em decorrência de seus talentos analíticos, padrões éticos elevados e desafios para interpretar dinâmicas sociais veladas, autistas têm mais disposição que neurotípicos a romper com vieses de grupo. Consequentemente, são os primeiros a perceber as consequências danosas de ser voz dissidente em sessões de brainstorming, tornando-se alvo de bullying e assédio moral.
Quando a drenagem energética provocada pelo trabalho atinge níveis críticos, esses talentos adoecem ou se veem obrigados a pedir demissão, privando a organização de competências raras nos times (mas abundantes em neurodivergentes), como detecção de padrões, abordagem sistemática, criatividade na resolução de problemas e capacidade de hiperfocar.
Em contrapartida, quando liderança e time acolhem demandas razoáveis por adaptações que vão trazer conforto individual e facilitar com que aquela pessoa realize seu melhor trabalho, uma dinâmica de respeito, apoio mútuo e saúde se instaura. As adaptações para uma pessoa empodera as outras a refletirem sobre as condições para sua melhor entrega e a demandá-las ao grupo. Todo mundo sai ganhando.
Nesse sentido, a principal diferença entre times saudáveis e times adoecidos é a crença compartilhada que o ambiente é suficientemente seguro para a tomada de riscos interpessoais, o que inclui pedir por adaptações razoáveis. Chamamos essa crença compartilhada de segurança psicológica.
Neurodivergentes são os canários nos escritórios modernos. Mais sensíveis ao ambiente e aos processos de gestão, esses canários se debatem contra as gaiolas, sinalizando que o ar é tóxico para todo mundo. Basta ouvi-los.
Rompendo com modelos arcaicos
Foi necessária uma crise sanitária global para desconstruir crenças ancoradas na gestão por comando e controle. Mesmo alardeando por duas décadas a impossibilidade de migrar para o modelo do trabalho remoto, muitas organizações tradicionais se viram obrigadas a adotar a medida durante a pandemia de covid-19, para somente então perceber seus efeitos benéficos sobre o bem-estar, inclusão e produtividade dos times.
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Artigo publicado na Edição 138 da Revista Coaching Brasil em Novembro 2024, escrito por Eduardo Estellita
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