Há alguns anos, um seriado de televisão apresentou um conceito simples de forma inusitada.
Nele, o personagem principal sai com os amigos para jantar e apresenta sua nova namorada. Aos seus olhos apaixonados, a namorada é simpática e agradável, porém os amigos respondem de forma brusca e rude às perguntas que ela faz para melhor conhecê-los.
Sem entender o que aconteceu, ele pergunta aos amigos e eles eventualmente quebram a ilusão de como a conversa realmente ocorreu. A namorada falava sem parar e as respostas eram bruscas porque ela não deixava nenhum espaço para eles responderem.
A partir daí, o episódio centra na ideia das ilusões que criamos das interações que temos com as outras pessoas e sugere que a ilusão é como uma janela de vidro fosco que se quebra quando nos apontam o que não estamos enxergando.
Se quebrarmos a janela, nossas trocas passam a ser vistas com mais clareza e, mais interessante ainda, esse é um processo irreversível. Não se pode deixar de enxergar algo, uma vez que a janela foi quebrada!
Como criar o hábito de quebrar janelas?
Interessar-se pela diversidade é desenvolver o hábito de quebrar essas janelas.
As janelas são nossos vieses, estereótipos, preconceitos e ignorâncias sobre a outra pessoa.
Elas são construídas pela separação física, pelos sistemas de privilégios, pela branquitude e pelas normas sociais impostas pelos grupos que historicamente tiveram voz e poder na sociedade.
Elas também são construídas pela nossa tendência tão humana e egocêntrica de achar que outras pessoas são meras coadjuvantes da nossa história, compartilhando nossa cultura, valores e visões de mundo.
Quebrar a janela significa sair da minha percepção limitada do mundo e ouvir como a outra pessoa enxerga o mesmo evento que compartilhamos.
Como desenvolver empatia?
Quando conduzo workshops sobre empatia, com frequência, participantes me perguntam como fazer escolhas que desenvolvam musculatura empática.
As sugestões habituais são ler mais livros de ficção, assistir a mais filmes biográficos que trazem a perspectiva de alguém socialmente diferente de você, abordar mais conflitos com a comunicação não-violenta, realizar mais viagens culturais, abrir-se a conversas fortuitas com estranhos na rua, entre outros.
Gostaria de sugerir uma outra, talvez um pouco mais radical: tornar-se uma pessoa ávida por quebrar suas próprias janelas.
Em termos práticos, isso significa ter a disposição para ouvir com atenção quando outra pessoa vier com aquelas palavras que causam calafrios: “O que você disse/fez naquele dia não foi legal para mim porque…”.
Em vez de parar de escutar, preparar sua defesa, explicar sua intenção ou afastar o feedback como mais um “mimimi” de gente que não entende o “humor brasileiro”, realmente ouça e faça um esforço de alteridade.
- Qual é a perspectiva que a outra pessoa traz?
- Em que o que disse toca em feridas históricas das quais nem tinha consciência?
- Qual seria o efeito cumulativo para ela de ouvir o meu comentário ou ser tratada dessa forma constantemente, dia após dia, por várias pessoas (isso se chama microagressão)?
O que aprendo mudando minha postura?
Adotando essa postura, você descobre porque:
- a tentativa de elogio do “você nem parece trans” na verdade não é elogio,
- aquele ato de cavalheirismo reproduz o machismo,
- colocar aquela cliente chata na sua “lista negra” ajuda a reproduzir estereótipos racistas
- sua gentil oferta de carregar a pessoa cadeirante no colo para subir as escadas do metrô é invasiva e descabida.
Sua intenção pode ter sido a melhor do mundo e é claro que intenções têm valor, mas não as use como escudo para proteger seu vidro.
Deixe-o quebrar-se e acolha o aprendizado.
E você não precisa parar por aí. Pode ser proativo.
Pode perguntar em privado para aquela pessoa que revirou os olhos ou trocou olhares cúmplices com outros quando você estava falando, se o que você disse ofendeu de alguma forma.
Às vezes a pessoa entendeu errado, às vezes o seu vidro o está impedindo de enxergar um elemento importante da equação.
Como se engajar honestamente em conversas difíceis?
Em grupo, outra forma de quebrar suas janelas é preparar as outras pessoas para o que está por vir e pedir para que ajudem você a quebrar um vidro que possa estar embaçando sua visão.
Antes de expor uma opinião polêmica, gosto de começar com um “Gostaria de fazer uma declaração polêmica e fazer o advogado do diabo quanto a esse ponto que trouxeram e peço que, por favor, me corrijam ou tragam elementos que eu talvez esteja ignorando nessa situação”.
Ou então “Não domino o tema e toda a linguagem apropriada, então se por acaso usar uma palavra que ofenda peço que, por favor, me alerte ao final da minha fala.”
É preciso uma certa dose de humildade intelectual e coragem para ser vulnerável a esse ponto.
Em fóruns onde as pessoas buscam mais sangue que conexão, pode ser que o tiro saia pela culatra. Porém, em minha experiência, na grande maioria dos casos, comportamentos como esse ajudam a criar espaços de trocas mais autênticas.
São movimentos que aliviam o medo de todas as pessoas presentes de dizer uma besteira e serem expostas. Em consequência disso, abordar temas polêmicos deixa de ser explosivo ou fonte de angústia e se torna uma experiência prazerosa e transformadora para todo mundo.
Essa é uma posição especialmente relevante quando se discute diversidade.
E honesta! Porque a verdade é que ninguém conhece todas as realidades e ninguém conhece o que não sabe que desconhece.
Todo mundo está em uma jornada!
Todo mundo tem seus vidros a quebrar.
Se você está no topo da hierarquia de privilégios (em outras palavras, se você é um homem, branco, heterossexual, cisgênero, sem deficiências, neurotípico e em idade ativa) a probabilidade é que você precise quebrar alguns vidros a mais. E isso é OK! Está tudo bem!
Quebrar nossas janelas nem sempre é um processo agradável. As vezes os cacos de vidro nos causam pânico, mas no longo prazo, só temos a ganhar. Passamos a nos portar em nossas interações como pessoas que enxergam uma realidade mais límpida e colorida.