#PraTodosVerem: Foto de uma mulher de cabelos brancos em cadeira de rodas, sendo empurrada por outra mulher em uma paisagem gramada no crepúsculo. Ambas estão de costas para a câmera. #TioPaulo. #Maternidade Dia das Mães #DiaDasMães. Economia do cuidado. #Racismo. #Envelhecimento #Cuidado

Caso Tio Paulo: lições sobre maternidade e economia do cuidado

Complete a história: “Uma mulher entra em uma agência bancária com um senhor em cadeira de rodas. Quando é sua vez de ser atendida, o senhor (Tio Paulo) já está morto.”

Versão 1: Talvez essa seja uma anedota para o jornal da tarde “denunciar” sem muita profundidade a longa demora no atendimento ao cliente nas agências bancárias

Versão 2: Ou talvez seja uma história sobre o empréstimo de 17 mil que o senhor havia pedido há 3 semanas no banco para cobrir os custos de um procedimento médico emergencial. Frente à demora da operadora do seu plano de saúde em aprovar a cirurgia, o senhor precisou pegar dinheiro emprestado para entrar com uma liminar na justiça ou pagar pela operação fora do plano. No fim, ele descansa em meio à burocracia.

Versão 3: E se fosse a história de uma trambiqueira que achou que enganaria todo mundo levando um cadáver para fazer empréstimos em seu nome. Felizmente, ela foi filmada por funcionários zelosos da agência e presa em flagrante. O caso provoca revolta nacional, o cadáver ganha apelido e um filme do catálogo do Cinema em Casa é reciclado em meme para saciar o saudosismo da Geração Millenial. No fim, a justiça é feita contra essa pessoa monstruosa, que passará o resto da vida na cadeia.

Concorda comigo que todas essas narrativas são igualmente prováveis de você encontrar nos jornais e redes sociais?

Se considerarmos o Twitter então, com a habilidade de seus usuários em escrever romances inteiros a partir de 140 caracteres, as possibilidades tornam-se infinitas.

 

Quais narrativas você compra?

Afinal, o que nos faz preferir uma história sobre a outra?

Pensando na versão 3, do Tio Paulo e da sobrinha Erika de Souza Nunes, o que exatamente no rosto dessa mulher nos faz decidir em milissegundos se estamos diante de uma trambiqueira ou de uma cuidadora devota, em estado de choque?

Se a sobrinha ou o defunto fossem clientes “prime” do banco, os mesmos funcionários teriam sacado seus celulares para filmá-los sem cerimônias?

Todos os veículos de comunicação teriam circulado as imagens do vídeo, ferindo a dignidade do falecido e o direito da sobrinha de averiguação completa dos fatos antes de ser arremessada ao tribunal popular?

E se ela fosse médica, advogada, celebridade ou simplesmente uma mulher branca de classe média, as imagens teriam sido divulgadas da mesma maneira?

O valor do empréstimo importa? Que palavras utilizamos para nos referir à sobrinha Érika em comparação à aluna da USP que no ano passado “desviou” 1 milhão de reais da comissão de formatura?

Mais do que “o que realmente aconteceu” ou “a história que estão nos empurrando”, o que realmente me preocupa (e talvez preocupe você também) é a seguinte pergunta:

O que faz com que a gente compre com tanta rapidez e certeza uma história em vez de outra?

 

A segunda mãe e o ofício de cuidadora

Corta para 2015.

O filme “Que horas ela volta?” de Anna Muylaert conquista prêmios em festivais internacionais de cinema e choca europeus com um retrato da herança do regime escravocrata (que eles próprios implantaram) em nossas relações familiares.

  • “É verdade que no Brasil as babás recebem um salário-mínimo para realizar todas as tarefas da casa, além do cuidado das crianças?
  • Que precisam abandonar seus filhos para cuidar dos filhos dos patrões?
  • Que moram em um quarto de 6 m2 em regime “semiaberto”?
  • Que não podem comer no mesmo cômodo nem a mesma comida que os patrões? Que usam banheiros diferentes?
  • Que exercem um papel no desenvolvimento emocional e, em alguns casos, até sexual dos filhos dos patrões?”

Não foi por coincidência que o título internacional escolhido para o filme tenha sido “A segunda mãe”.

O filme escancarou para o mundo (e talvez para nós) que o machismo e o racismo não somente estruturam a esfera pública, como também a privada.

Na esfera pública, machismo e racismo reproduzem um processo de desvalorização econômica e simbólica das profissões de cuidado, assegurando a transferência intergeracional do ofício de profissional do cuidado, intocado desde o período colonial. Pensa comigo, nos dias atuais, qual é a cor de pele da maioria das profissionais de limpeza, enfermagem, nutrição e educação infantil?

Na esfera privada, machismo e racismo determinam quais crianças não têm direito ao convívio com sua mãe e quais têm a oportunidade de ter duas mães. Quais mães têm rede de apoio e acesso a creche e quais são pagas para serem rede de apoio de outra pessoa, sem políticas públicas efetivas de suporte à maternidade.

E em nossas empresas…

  • Quando celebramos o Dia das Mães, reconhecemos e prestamos homenagem a todas essas mães?
  • Sabemos de qual grupo as mães da nossa equipe fazem parte?
  • Oferecemos a elas as mesmas condições para estar no convívio e participar integralmente da criação de seus filhos?

 

Tio Paulo, Erika e envelhecimento populacional

Fato pouco mencionado nas narrativas do Tio Paulo é que Erika, sua famosa sobrinha, é também mãe.

Procurado pelo Uol, um dos filhos disse que “”Minha mãe criou seis filhos, nunca precisou roubar, enganar ninguém para criar os seis filhos dela. Nossa vida é muito bem encaminhada, e a nossa mãe sempre foi nossa maior inspiração”.

Assim como em muitas famílias e comunidades desfavorecidas, não há variedade de oferta nem tempo para deliberar longamente quem vai cuidar das crianças e das pessoas idosas. A cuidadora é quem pode, quem sobrou em pé quando a dança das cadeiras do emprego pausou a música, quem tem força física para carregar a cadeira de rodas aonde a rampa não chega e quem demonstra afeto por quem está cuidando.

Isso acontece porque as outras mulheres da família são remuneradas para cuidar de outra família, com mais dinheiro. Uma parente do Tio Paulo explica: “A Erika, por não ter vínculo empregatício, ela é quem mais protegia ele. ‘Tio, já almoçou? Quer alguma coisa?’. Era isso”.

Nos últimos 40 anos, a expectativa de vida da população brasileira aumentou 15 anos. Enquanto isso, o SUS sofreu sucessivos cortes de investimento e os planos de saúde se redirecionaram para o público empresarial, reduzindo cobertura e aumentando os preços das apólices individuais muito acima da inflação.

Em um contexto de rápida PJ-tização do trabalho, a conta do cuidado na sociedade brasileira não fecha, porque as pessoas precisam trabalhar mais horas para pagar do próprio bolso os planos de saúde e benefícios da carteira assinada. Essa conta já não fecha há muito tempo e provavelmente fechará menos ainda nos anos por vir.

Ou seja, vamos ter mais pessoas idosas precisando de cuidados de saúde, menos acesso aos serviços de saúde pública e menos pessoas ainda com possibilidade de atuar como cuidadoras nas suas próprias famílias.

 

Tem moral no caso Tio Paulo?

A história do Tio Paulo é inquietante! É normal que ela tenha provocado em você tantos sentimentos conflitantes quanto provocou em mim. Talvez mais.

Não estou aqui para defender nem atacar ninguém. Felizmente, ninguém espera isso de mim porque, sinceramente, até ter um pensamento específico sobre o caso, não tinha encontrado sossego algum.

Depois desse pensamento, surgiu algum pedaço de lição e me dei por satisfeito para pelo menos seguir com meu dia.

Eis minha Versão 4 da história:

Uma mulher entra em uma agência bancária com um senhor em cadeira de rodas. Quando é sua vez de ser atendida, o senhor já está morto.

Que sorte ele teve de ter alguém oferecendo-lhe cuidado até seu último minuto de vida!

 

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