O debate público em torno da paternidade e da masculinidade tem sido cada vez mais centrado nas falhas, crises e carências dessas instituições. Empresas podem evidenciar novos modelos de masculinidade e engajar os homens na promoção da equidade por meio de iniciativas menos tradicionais no pilar de gênero. Uma dessas soluções pouco exploradas é a revisão da licença paternidade, com múltiplos benefícios para as pessoas, empresa e toda a sociedade.
Cancelamento da palavra “pai”
Nas vésperas do Dia dos Pais, o Grupo Boticário foi elogiado no LinkedIn por enviar um e-mail ao corpo de colaboradores alertando que iniciaria as comunicações para a data comemorativa e que, quem desejasse, poderia optar por não receber esses comunicados. Em outra rede social, a simples menção da palavra “pai” se tornou tacitamente proibida, a ponto de toda transgressão ser acompanhada de reações violentas e alusões aos gatilhos do seu uso.
Ninguém precisa mergulhar em dados por muito tempo para entender por que logo a palavra “pai”, em vez de “mãe” ou “avós”, é fonte de angústia para tantas pessoas. Há uma gigantesca discrepância entre as estatísticas de abuso psicológico, sexual e abandono cometidos por pais em comparação com mães. E essa discrepância se mantêm também na quantidade de horas semanais que pais e mães dedicam ao cuidado dos filhos.
A percepção geral é que na sociedade brasileira a barra para ser considerada uma “boa mãe” é inalcançável, enquanto a do “bom pai” é tão baixa que, se você não prestar atenção, tropeça nela. Se você voltou para casa depois de ir comprar cigarro, já trocou uma fralda, sabe o nome dos amigos dos filhos e os vê a cada 15 dias, você já está automaticamente concorrendo ao prêmio de “pai do ano”.
Apesar de achar que seja sim muito importante levantar essas questões, seguir o exemplo do Boticário e demonstrar compaixão com quem teve relações traumáticas com figuras paternas, é igualmente imprescindível propor, viabilizar e lançar novos olhares sobre a paternidade.
Pilar de gênero sem homens
Na grande maioria das empresas, o pilar de gênero é construído exclusivamente por e para mulheres. E isso é não somente problemático como também ineficiente.
Para promover equidade, é imprescindível oferecer espaços seguros para conversar sobre os efeitos do patriarcado sobre mulheres e suas carreiras, porém, por falta de convite, interesse ou medo dos próprios homens, o debate raramente os implica. Isso sem mencionar pessoas trans e não-binárias, que, com suas experiências de transição, têm muito a contribuir para a conversa.
A verdade é que nenhuma dinâmica relacional se resolve por completo conversando com apenas um dos lados, especialmente quando o lado ausente é precisamente aquele que está na origem da violência e mais se beneficia das dinâmicas de poder.
Quer dizer que homens são vítimas?
O fato de homens se beneficiarem da estrutura patriarcal não exclui a possibilidade de que eles também estejam sofrendo com essa mesma estrutura.
Não se trata aqui de absolvê-los das desigualdades e violências que perpetuam ou de colocá-los na posição de vítima, mas de reconhecer e engajá-los na construção por uma sociedade e relações de trabalho mais justas. Se não para o bem das mulheres em seu entorno, para o seu próprio.
De acordo com o IBGE, homens são menos de metade da população brasileira, mas representam
- 95% da população carcerária
- 83% das vítimas de homicídio e acidentes
- 79% dos suicídios
- Vivem, em média, 7 anos a menos que mulheres.
Acho que todo mundo pode concordar que esse cenário está longe de ser um modelo de saúde e prosperidade, certo?
O que a paternidade tem a ver com tudo isso?
Transformar a paternidade em tabu e abster-se de debatê-la na empresa é contribuir para a normalização da estrutura patriarcal que o pilar de gênero visa desconstruir. E garantir o silêncio em torno de sentimentos de dúvida e inadequação é precisamente a maneira mais eficaz de perenizar modelos tóxicos de masculinidade.
Isso porque a maioria dos homens foi educada por outros homens a esconderem suas emoções. Muitos sequer desenvolvem um vocabulário emocional rico. E por mais insalubre que seja esse comportamento, ele continua sendo bastante confortável para nós.
Segundo pesquisa do Instituto Papo de Homem com 47 mil homens, 60% dos respondentes concordam que foram ensinados na infância e adolescência a não expressar suas emoções e menos de 20% tiveram conversas e exemplos práticos de figuras paternas sobre como lidar com elas de maneira saudável.
Nesse sentido, a experiência da paternidade, que pode ser profundamente intensa para quem se engaja, é a oportunidade para manter ou romper esse ciclo de silêncio.
Celebrá-la com espaços de conversa que evidenciem para outros homens da empresa novas maneiras de exercê-la de maneira sadia tem um impacto simbólico importante.
Não se trata aqui de distribuir prêmios condescendentes para quem fez o mínimo, mas de lançar luz sobre como a paternidade pode ser uma oportunidade de se conscientizar, questionar e torna-se aliado pela equidade de gênero.
Por que revisar políticas de licença paternidade importa?
No Brasil, a licença maternidade garantida por lei é de 4 meses (ou 6 meses em empresas que aderem ao programa Empresa Cidadã). Já a licença paternidade é de apenas 5 dias (ou 20 dias, para Empresa Cidadã). Menos que um feriadão.
É óbvio que ela não é suficiente para a formação de um vínculo saudável nos primeiros dias de contato do pai com a criança. E esse maior envolvimento desde o início gera um padrão de maior envolvimento que tende a permanecer, possibilitando novos arranjos de responsabilidades familiares que divergem da norma machista.
Além disso, estender, flexibilizar ou equiparar a licença paternidade com a maternidade contribui significativamente para a equidade de gênero na empresa e na sociedade porque desconstrói papeis de gênero ultrapassados que prejudicam diariamente as carreiras das mulheres, ao mesmo tempo em que pode mudar o discurso na empresa em torno de uma participação mais ativa de pais no cuidado diário dos filhos e nas tarefas domésticas.
Mais uma desculpa para distribuir vantagem para homem?
Políticas de Diversidade e Inclusão bem desenhadas têm um efeito muito peculiar: mesmo quando voltadas para um público específico, elas são benéficas para todo mundo.
Com a equiparação das licenças parentais não é diferente. Não é somente homens heterossexuais em casal que saem ganhando, mas também famílias homoafetivas, adotantes, pais solo e tantas outras configurações familiares à margem das políticas públicas.
Em todas as conversas sobre gênero em que participei nas empresas, mulheres apontaram como são frequentemente penalizadas pela maternidade e pela possibilidade de uma eventual gravidez: de perguntas indiscretas em processos seletivos a oportunidades de promoção perdidas, passando por assédio moral ao revelar a gravidez, demissão no retorno da licença e burnout no puerpério.
Essa experiência anedótica se confirma em diversos relatórios da McKinsey, Ipsos Mori, ONU Mulheres e Organização Mundial do Trabalho que comparam empresas e países com diferentes modelos de licença parental.
Quando integrada à cultura organizacional, a equiparação das licenças parentais renivela o campo de jogo para que mulheres possam competir e ocupar vagas cobiçadas na empresa com muito mais eficiência que qualquer política de cotas. Isso ocorre principalmente porque a racionalização da licença maternidade como risco para a “eficiência da operação”, utilizada por muitas lideranças para discriminar, cai por terra.
Do mesmo modo, quando a licença é estendida a todo mundo, a empresa precisa se organizar melhor para planejar os afastamentos e retornos, aprimorando a retenção na volta da licença.
O resultado é um aumento gradual e sustentável da proporção de mulheres em cargos estratégicos e de liderança.
Impacto além dos muros da empresa
No plano social, um estudo de 2015 da Universidade de Oslo revelou que a licença paternidade estendida implementada no país melhorou o desempenho das crianças no ensino fundamental, a qualidade da relação do casal, reduziu o gap salarial de gênero e, consequentemente, a renda familiar média no país. Ademais, homens que não tiram suas licenças parentais são duramente questionados e mal avaliados em entrevistas de emprego.
Nada mal para uma única política!
Sem esperar uma atualização das leis trabalhistas no Brasil, empresas dos mais variados setores estenderam e equipararam as licenças parentais. Esse é o caso da Volvo, Nubank, Boticário, Diageo, Bayer, Haleon e JP Morgan, para citar algumas.
Com um olhar holístico para o tema, no Instituto Diversidade apoiamos empresas na jornada de construção, implementação de programas e políticas de gênero mais equitativas.
No caso da equiparação das licenças, não basta publicá-las na intranet, é preciso acompanhar a transformação cultural para que ela de fato seja encorajada, respeitada e integrada nos processos da empresa.
Há mil razões para começar já. O que sua empresa está esperando?